FÓRUM LIBERDADE EPENSAMENTO
CRITICO
14 de Julho-Liceu Camões
“Todo o pensamento começa por um poema”, ensinava Alain no seu
diálogo com Valéry.
Neste tempo, sem tempo, de
permanente corrida contra ele e não com ele, o tema da liberdade, por ser
intemporal deve e tem que acompanhar a vida de cada pessoa, não se vá ela
perder ou disfarçar, assumindo formas perversas e enganadoras. Por isso é
também fundamental o conceito de pensamento
crítico associado à Liberdade bem como à Equidade e Fraternidade, pilares
maiores da nossa civilização. O conceito
de pensamento crítico ainda hoje difícil de organizar e desenvolver nas
sociedades humanas, traz- me à memória a figura de uma mulher que nasceu no ano
350, num tempo, como o de hoje, em muitos lugares do mundo, em que eram
sonegados à mulher o direitos mais fundamentais, incluindo a sua capacidade de
pensar. Falo de Hepatia de Alexandria,
que disse, na sua sabedoria de mulher sem direitos, mas inteligente, consciente
e lutadora, “ reserva o teu direito de pensar. Mesmo pensando errado, é melhor
pensar do que não pensar”. Esta mulher ao exortar ao exercício do pensamento e à
prática da reflexão, aponta caminhos que levam ao questionamento, à
interrogação, à procura de respostas para o desconhecido, à tomada de decisões
e à respetiva responsabilização, à partilha do pensamento com os outros e
também à desobediência…Hepatia tinha, contudo, consciência de que estas vias só
se conseguem em pleno se houver liberdade, o que ela só conseguiu por breves períodos,
em poder manifestar e expandir os seus talentos, acabando, no entanto, por ser
assassinada, devido à sua ousadia. É essa tomada de consciência que tem levado
milhares de seres humanos a lutar e morrer, ao longo dos tempos, para
conquistar a liberdade e mantê-la bem próxima de si, pois a História demonstra
que não é um bem adquirido para sempre. Em qualquer momento se pode perder por
tempo indeterminado…
Aliada ao pensamento e à reflexão, também a comunicação
é essencial para realizar o ser humano enquanto pessoa e permitir a criação de vínculos
de uns para com os outros. Por isso, num grupo ou numa comunidade, é fundamental,
que se desenvolva desde cedo o hábito de pensar, refletir e comunicar o que
leva a que se possa usar, da melhor forma, a demonstração e a argumentação para
se defenderem e preservarem os princípios e valores que lhes são caros, como os
que movem a realização deste Fórum. O apelo à análise, em várias vertentes, do
tema Liberdade e pensamento crítico
vai no sentido de que se se compreender e estimular a capacidade de reflexão e
argumentação, dá-se um passo muito importante para que cada cidadão e cada
cidadã se constitua membro ativo da sua comunidade e para que o conceito de
cidadania alcance o seu verdadeiro significado e a sua expressão mais profunda.
Como pode então a poesia
inserir-se nesta elaboração de pensamento, nesta reflexão, nesta procura, nesta
luta, em suma, na defesa da liberdade?
Atahualpa Yupanki, de entre as muitas das suas canções, chamadas de
protesto, cantou uma que começa assim:”yo tengo
tantos hermanos/que no los puedo contar/y una hermana muy hermosa/que se
lhama libertad”.E esta luta pela defesa desta irmã mais formosa perpassou por
toda a sua obra e a sua vida, levando esta mensagem aos quatro cantos do mundo.
Como ele muitos outros também, ao longo dos tempos e em diversas línguas o
fizeram, como o inesquecível Zeca Afonso. No entanto, não é apenas nos cantos
que são armas que a palavra poética se pode manifestar refletindo o desejo ou a
perda de Liberdade. Nos poemas mais líricos, as palavras tomam asas e revelam
os mais profundos sentimentos ou emoções como enunciação de liberdade que pode
ser não apenas física mas ir ao âmago mais profundo da humanidade de cada
sujeito- aqui ouve-se, por exemplo, Florbela “Meu doido coração aonde vais,/No
teu imenso anseio de liberdade?”- construindo o seu caminho na senda da verdade,
reafirmando o que Heraclito defendia ao dizer que “a poesia e a verdade são
sinónimos”, e eu atrevo-me a acrescentar mais um sinónimo à verdade, que é a
liberdade.
Muitos poetas de todo o mundo
elegeram a liberdade como mote de alguns dos seus escritos, quer pela falta
dela, quer pela necessidade de a preservar, nomearam-na, como Paul Eluard, e
também como muitos poetas nossos. A poesia lança as sementes à terra que é
lavrada pela mão e alma dos poetas e, uma dessas sementes, é aquela irmã mais
formosa que se chama liberdade. Ao longo do tempo homens e mulheres têm usado as
palavras para além da sua função comunicativa transformando-as em poemas, canções,
teatro, filosofia, permitindo à Liberdade
um terreno fértil para florir.
George Steiner tem um livro a que
deu o título “A poesia do pensamento”. Nada podia ser mais verdadeiro, nem mais
significativo. Esta noção eleva a poesia aos mais altos patamares da cultura
humana. Poesia e pensamento caminham lado a lado em todos os atos da vida, pelo
que quando identificamos em Cervantes o retrato do herói que é o género humano,
representado por D.Quixote e Sancho Pança, vê-se a humanidade na sua busca incessante,
do sonho, da liberdade e da Utopia. Sartre afirma que a filosofia se exprime
através de uma linguagem literária. Há como que uma conjugação individual do
filosófico e do poético, numa parábola de espelhos. Renée Char punha a poesia
acima da Filosofia, o que é reforçado por Althusser que afirma que o pensamento
filosófico só pode realizar-se metaforicamente, ou seja, pela poesia. Uma ideia
explica-se. Uma emoção manifesta-se numa palavra expressiva, numa imagem pois
“há poesia em tudo”, como dizia Pessoa. A poesia é assombro, admiração, liberdade,
que se faz com as mãos como escreveu Alegre e cantou Adriano. Coleridge afirma
que “a prosa é as palavras dispostas na melhor ordem, enquanto a poesia é as
melhores palavras dispostas na melhor ordem”. Daqui partir para a ligação da
poesia à música parece obvio, ou seja , a poesia aproxima-se extremamente da
fusão do conteúdo e da forma que há na música. Ambas partilham “ certas
categorias seminais do ritmo, do fraseado, da cadência, da sonoridade, da
entoação e medida”. A canção aparece de uma partilha em que as palavras gostam
de si mesmas e transportam dentro delas uma musicalidade e pulsação naturais. A
música, por sua vez, desperta as palavras que estão adormecidas nela.”São como
um cristal/as palavras”, diz Eugénio. São “matérias-primas partilhadas”, como
diria George Steiner. Um verso é emoção e nasce diretamente da voz. Ele
preserva no seu interior a dinâmica da fala, da vocalização, por isso essa
parentalidade com a música mas também com o teatro, a representação, a
colocação da vida no palco, sendo o palco a própria vida-toda ela sonho como
escreveu Calderon de la Barca.
Sendo a criação poética uma
atividade intelectual de grande intensidade, a poesia tem uma universalidade
que transporta necessariamente a liberdade com ela e assim dá voz ao futuro e á
esperança, e mostra-nos a esperança como tempo futuro. É também uma espécie de
aventura do espírito que pode rasgar janelas e destruir muros de ignomínia. Mas
também é abismo e solidão e, segundo Echevarria, a solidão é sempre fundamento
de liberdade. E mencionando apenas alguns poetas, homens e mulheres, que
escreveram sobre a Liberdade, lembro Ricardo Reis, no ano da sua morte que confidencia
“ serei livre, sem dita nem desdita/ como o vento que é vida”; e Sophia “ aqui
livre sou eu/como eco da lua”, e Torga clamando “quero a liberdade/trago-a
dentro de mim/como um destino”, e Antero num grito ”aspiro unicamente à
liberdade”, e Ana Hatherley, numa certeza“ Canto-te para que tu definitivamente
existas”, enquanto que Luiza Neto Jorge revela “o meu sono é leve para a liberdade
(…)/acordas-me só de pensares nela”, Jorge
de Sena, exprime num desejo intenso “não hei-de morrer sem saber qual a cor da
liberdade”.
E termino com Steiner que resume
o que se pretendeu dizer: ”a poesia é como um happening coletivo que clama
liberdade. E algures um cantor rebelde, um filósofo que a solidão embriaga,
dirá :Não! Uma silaba carregada de promessa de criação.”
Lisboa, 3 de Julho de 2018
Guadalupe Magalhães Portelinha