Caiu sobre o país uma cortina de silêncio a voz distingue o homem mas há homens que não querem que os demais se elevem sobre os animais e o que aos outros falta têm eles a mais no dia de natal eu caminhava e vi que em certo rosto havia a paz que não havia era na multidão o rosto da justiça um rosto que chegava até junto de mim de nicarágua um rosto que me vinha de qualquer das indochinas num mundo onde o homem é um lobo para o homem e o brilho dos olhos o embacia a água Caminhava no dia de natal e entre muitos ombros eu pensava em quanto homem morreu por um deus que nasceu A minha oração fora a leitura do jornal e por ele soubera que o deus que cria consentia em seu dia o terramoto de manágua e que sobre os escombros inda havia as ornamentações da quadra de natal Olhava aquele rosto e nesse rosto via a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados e os pés gretados de homens humilhados de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés ao longo de desertos descampados Morrera nesse rosto toda uma cidade talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros se permita exercitar melhor a caridade A aparente paz que nesse rosto havia como que prometia a paz da indochina a paz na alma Eu caminhava e como que dizia àquele homem de guerra oculta pela calma: se cais pela justiça alguém pela justiça há-se erguer-se no sítio exacto onde caíste e há-de levar mais longe o incontido lume visível nesse teu olhar molhado e triste Não temas nem sequer o não poder falar porque fala por ti o teu olhar Olhei mais uma vez aquele rosto era natal é certo que o silêncio entristecia mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar tal rosto para ver que alguém nascia Ruy Belo - Todos os Poemas II. Lisboa: Assírio Alvim, 2004, pág. 1776 e 177 .
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